sábado, 29 de agosto de 2009

MEMÓRIAS DE JAVÉ: uma breve e despretensiosa análise do filme Narradores de Javé

Javé é um povoado baiano que deverá desaparecer em breve sob as águas em virtude da construção de uma usina hidrelétrica. Diante dessa situação, seus moradores se reúnem para discutir o problema e tentar buscar meios para que o povoado continue a existir. A solução que encontram é fazer com que Javé se torne patrimônio histórico, o que garantiria sua preservação. Porém a história do povoado jamais foi registrada, sobre ela não há nada escrito. Tudo o que se sabe sobre seu surgimento foi transmitido de geração a geração pelas narrativas orais.

O grande desafio de Javé passa a ser, então, resgatar a memória coletiva por meio dos relatos orais, fragmentários e contraditórios de seus moradores. Para realizar a dificílima tarefa de coletar os relatos, selecioná-los e organizá-los “cientificamente”, o escolhido é Antônio Biá.

Biá, que anteriormente havia sido expulso do povoado justamente pela sua competência no trabalho com a palavra escrita, é o único entre os moradores que tem suficientemente desenvolvidas as habilidades e competências necessárias à produção eficiente de textos escritos. Ele inventou alguns acontecimentos, “floreou” outros e escreveu cartas narrando-os com o objetivo de aumentar a circulação de correspondências no povoado e garantir seu emprego na agência de correio local. A criatividade e a competência linguística que o condenaram no passado serviriam, nesse momento, a sua redenção.

Antônio Biá, caracterizado pelos recursos retóricos que emprega, por seus pensamentos, deduções e ironias – que nem sempre são alcançados pelos demais –, pode ser tomado como a representação da escrita e, de certo modo, de outros elementos da cultura letrada. Vale ressaltar que essa é a cultura do Outro, cujos objetivos implicam na destruição do espaço pertencente àquela comunidade. Isolar Biá, afastá-lo do povoado, significa rechaçar algo incompreensível e poderoso. O poder dele reside, fundamentalmente, em saber lidar com a palavra escrita com a proficiência que nenhum outro morador do local teria. As cartas que Antônio Biá escreveu impactaram negativamente toda a comunidade não tanto pelos episódios nelas narrados, mas principalmente pela força de verdade que eles adquiriram ao serem registrados pela escrita. Contra a narrativa escrita – planejada com cuidado, rica em detalhes, cujas palavras foram trabalhadas criteriosamente – pode muito pouco o discurso oral, desarticulado e inconsistente. Restou à população de Javé afastar de si o perigo, pois não teria condições de enfrentá-lo, já que não dispunha de habilidades suficientes para tal, as habilidades para lidar com a palavra escrita.

Porém a perspectiva de um futuro incerto provocado pela inundação de suas terras, e sem poder contar com nenhum documento formal que lhes garantisse a posse delas, os moradores de Javé foram obrigados a vencer seus temores e a repulsa por Biá. Reaproximam-se dele com intuito de fazê-lo usar a escrita para auxiliar a comunidade, registrando a história do lugar.

Tem início, então, o trabalho para fazer emergir a memória de Javé, que deverá ser registrada no “livro da salvação”. As dificuldades para cumprir esse propósito vão surgindo ao mesmo tempo em que as memórias individuais e coletivas. A primeira delas diz respeito à realidade (fatos) e a sua representação em linguagem (relatos orais).

Segundo Huyssen (2000, p.22),

Se reconhecermos a distância constitutiva entre a realidade e a sua representação em linguagem ou imagem, devemos, em princípio, estar abertos para muitas possibilidades diferentes de representação do real e de suas memórias.

Enquanto ouve o relato de um morador, Biá ensaia as primeiras linhas do “livro da salvação” e afirma: “uma coisa é o fato acontecido, outra é o fato escrito”. Assim, o escriba javeliano nos previne da impossibilidade de reproduzir fielmente a realidade. Sua tarefa deverá ser entendida, então, como a de produzir uma dentre as várias representações possíveis da realidade.

Porém não apenas nesse aspecto reside a inviabilidade de registrar com imparcialidade e isenção a história do povoado. É preciso considerar também o caráter fragmentário e subjetivo da memória. Ao lançar o olhar ao passado individual ou coletivo, não se depara com a realidade tal qual ela se deu, mas sim com a percepção que se teve de elementos que compõem essa realidade. Ao fazer emergir as lembranças, se traz à tona fragmentos do passado que foram selecionados por crenças e desejos que temos no presente. A seleção desses fragmentos, o modo como são organizados e como são preenchidas as lacunas existentes entre eles origina versões diferentes do passado.

Por essa razão, Antônio Biá se depara com informações diferentes e conflitantes sobre o surgimento de Javé, a começar pela identificação do herói fundador. A versão relatada por Vicentino apresenta seu antepassado, Indalécio, como o desbravador que conduziu seu povo até aquele lugar. Segundo outra, revelada por Deodora (a voz feminina do povoado), a corajosa Maria Dina é que liderava o grupo, pois Indalécio estava ferido. O líder do que parece ser uma comunidade quilombola existente em Javé apresenta o herói como Indaleo, um guerreiro africano.

Pressionado pelos moradores que se dividiam entre duas versões, Biá conclui: “[...] as histórias têm sentido, não se pode contar uma sem prejuízo da outra”.

O projeto de documentar a história de Javé e a utilização da palavra escrita não são desejos que surgem espontaneamente entre os seus moradores. Antes, são imposições do progresso representado pela construção da hidrelétrica, que muito provavelmente não beneficiará essa população. São imposições do poder instituído, das leis, cuja presença até então não se verificava em Javé. Nesse contexto, o uso da escrita e necessidade de documentar “cientificamente” os episódios do passado, de se produzir uma história estática e definitiva, que possa ser oficialmente reconhecida, não se apresentam como meios de preservar a memória e a identidade de um povo. São, antes, instrumentos de uma intervenção arbitrária que sufocam a vivacidade das narrativas orais, eliminam a pluralidade de percepções da realidade e põem em conflito crenças e desejos individuais que harmoniosamente compunham o imaginário e a memória coletivos. Huyssen (2000, p. 19) coloca em foco essa questão ao afirmar que

As contrastantes e cada vez mais fragmentadas memórias políticas de grupos sociais e étnicos específicos permitem perguntar se ainda é possível, nos dias de hoje, a existência de formas de memória consensual coletiva e, em caso negativo, se e de que forma a coesão social e cultural pode ser garantida sem ela.

Essa percepção é manifestada por Antônio Biá, que reluta em entregar o livro em branco, mas que diante da impossibilidade de conciliar as versões sobre o surgimento de Javé para escrever seu relato e percebendo que optar por uma delas não resultaria em traduzir a memória de seu povo, justifica não ter cumprido a sua tarefa: “[...] quanto às histórias, acho melhor ficar na boca do povo, porque no papel não há mão que lhes dê razão”. Porém é essa mesma personagem quem oferece uma alternativa para garantir a coesão social e cultural de que fala Huyssen. Biá revela essa alternativa num ato carregado de sentidos quando, ameaçado pelos moradores, se afasta de costas, como quem caminha para o futuro sem, no entanto, perder de vista os episódios do presente. Do passado, restarão os fragmentos, a pluralidade de versões da história e a sua riqueza reside exatamente nessa dispersão, que cria a possibilidade de se reinventar sempre que necessário. Sempre que as estruturas edificadas ruírem.

Depois de ter início a inundação, à beira da represa, Biá dá novo significado à palavra escrita. Diante do futuro incerto e, exatamente por isso, aberto a novas possibilidades, ele começa a escrever uma nova história de Javé. Diante disso, os moradores voltam a narrar episódios, porém não mais aqueles do passado remoto. Os protagonistas dessa nova história são eles próprios, que vêm o registro escrito dos acontecimentos como uma possibilidade viver o presente e de documentá-lo para entender o que virá daí por diante.


Referências bibliográficas:


HUYSSEN, Andréas. Seduzidos pela memória. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2000.


NARRADORES DE JAVÉ. Direção de Eliane Caffé. Bananeira Filmes/Gullane Filmes/Laterit Productons. Brasil: 2001. Rio de Janeiro: Lumière/Riofilme, 2003. DVD (100min), color.

MEMORIAL DE LEITURA

Para retomar os caminhos que me levaram ao magistério, à docência é necessário refazer minha trajetória como leitora e pensar o ato de ler, antes de tudo, como atividade lúdica e prazerosa.

A recordação mais remota que tenho do contato com a leitura são os gibis. Lembro-me de ler os da Turma da Mônica antes mesmo de ser alfabetizada. Passava com avidez as páginas das revistinhas, tentava inferir o que dizia a palavra escrita ao mesmo tempo em que me deliciava com os desenhos e terminava por criar minhas próprias histórias. Isso, porém, não me bastava: compartilhar essas criações era fundamental. Quase sempre havia em casa alguma pessoa disposta a me ouvir, mas se ninguém estivesse disponível, meu cachorro pequinês servia-me de platéia.

Depois entrou em ação a primeira professora de leitura que tive, minha avó materna. Frequentemente, ela se sentava comigo e lia histórias de uma antiga coleção de livros infantis, que meu avô havia comprado para os filhos na década de 50. Encantada pelas narrativas, desejava ardentemente saber ler para, por conta própria, viajar pelos textos. Quando alfabetizada, devorei todos esses livros e, hoje, eles ocupam lugar privilegiado nas minhas estantes. Uma vez ou outra pego um volume e folheio carinhosamente. Essa coleção foi o meu maior estímulo durante o aprendizado da leitura.

Em casa sempre havia os gibis, os livros para crianças. E havia também, enfileirados na estante da sala, bem lá no alto, os livros dos adultos. Ali ficavam enciclopédias, algo de literatura brasileira, algo de literatura estrangeira. Todos se tornaram acessíveis quando descobri que era capaz de alcançá-los, se subisse em uma cadeira.

Assim, quando a professora da segunda série ensinou o que eram sonetos e pediu que a turma copiasse alguns nos cadernos de poesia, não me apertei. Descobri na estante os sonetos de Shakspeare, escolhi três deles e concluí meu dever de casa. O curioso foi que, ao apresentá-la, a professora tenha me pedido para completar tarefa, alegando que havia me esquecido de copiar os títulos dos poemas. Não adiantou dizer a ela que não havia títulos, que no lugar deles estavam números, exatamente do jeitinho como eu registrara em no caderno. Como conseqüência, a nota que recebi não foi das melhores e eu descobri que - ao contrário do que imaginava - as professoras não tinham lido todos os livros do mundo. Por isso, com toda certeza, a biblioteca da escola poderia me oferecer um rol de leituras bem mais amplo do que aquele indicado por elas. Passei a visitar a biblioteca pelo menos uma vez por semana, durante o recreio, para escolher sozinha aquilo que gostaria de ler.

Explorei as bibliotecas das escolas onde estudei e aos doze anos, seduzida pelas capas coloridas de uma imensa coleção, levei para casa muitos clássicos da literatura brasileira. Ainda com olhos imaturos, li Camilo Castello Branco, José de Alencar, Machado de Assis... De Machado, eu não gostei muito (como era difícil entender!), mas Camilo Castello Branco me encantava. Ainda me recordo do quanto me deliciei com Amor de perdição. Interessante é que bem mais tarde, já me preparando para o vestibular, reli esse livro a contragosto, por obrigação, tremendamente entediada. Por outro lado, a obra de Machado de Assis me tomou completamente e ele é, ainda hoje, um de meus autores favoritos.

Por volta dos treze anos, comecei a freqüentar a Biblioteca Municipal e descobri Érico Veríssimo, Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos. Um pouco depois, conheci alguns sebos e comecei a compor uma pequenina biblioteca particular com meus autores favoritos.

Na adolescência, passei a integrar um grupo de teatro amador e essa experiência me apresentou um gênero textual que ainda era desconhecido para mim. Tive a partir daí a oportunidade não só de ler, mas também de participar de reuniões para discutir sobre peças de teatro e poemas. Não foram as atividades escolares, mas sim essas reuniões que mostraram o quanto a análise literária é apaixonante.

Não sei ao certo quando e por que decidi me tornar professora, mas tenho certeza de que foram as tardes de sábado dedicadas ao estudo dos textos que pretendíamos levar ao palco que me conduziram ao curso de Letras. Creio que a opção por lecionar tenha surgido baseada na expectativa de que a sala de aula pudesse ser um dos espaços mais adequados ao compartilhamento de um dos meus maiores prazeres: a leitura de textos literários.

Posteriormente, outras razões surgiram, mas isso é assunto para um outro relato.